Engels a Conrad Schmidt<br>(em Berlim)
[…] Vi o livro de Paul Barth (1) recenseado na Deustche Worte (2) de Viena pela ave de mau agoiro Moritz Wirth, e esta crítica deixou-me uma impressão desfavorável do próprio livro. Vou dar-lhe uma vista de olhos, mas tenho que dizer que, se o Moritzinho o cita correctamente quando Barth [diz] que em todos os escritos de Marx o único exemplo que pode encontrar da dependência da filosofia, etc., das condições materiais de existência é que Descartes declara que os animais [são] máquinas, um homem que pode escrever uma coisa destas me faz pena. E se o homem ainda não descobriu que, se o modo material de existência é o primum agens (3), isso não exclui que o domínio ideal exerça de novo sobre ele uma influência [Einwirkung] de reacção, mas secundária, ele não pode possivelmente ter compreendido o objecto [Gegenstand] sobre que escreve. Mas, como foi dito, isto é tudo de segunda mão, e o Moritzinho é um amigo desastroso [fataler Freund]. Além disso, há hoje um conjunto [de pessoas] para quem a concepção materialista da história serve de pretexto para não estudarem história. Exactamente como Marx dizia dos «marxistas» franceses do fim dos anos 70: «Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas Marxiste.» (4)
Houve também uma discussão no Volks-Trib[üne] acerca da repartição dos produtos na sociedade futura, sobre se ela deverá acontecer segundo o quantum (5) de trabalho ou de outra maneira (6). Abordou-se a coisa também muito «materialistamente» contra certos fraseados idealistas sobre a justiça. Mas, estranhamente, não ocorreu a ninguém que o modo de repartição [Verteilungsmodus] depende todavia essencialmente de quanto [é que] há para repartir e que, por certo, isso se altera com os progressos da produção e da organização social, devendo, portanto, alterar-se também, por certo, o modo de repartição. Mas, a todos os participantes a «sociedade socialista» não aparece como uma coisa compreendida numa contínua transformação e progresso, mas como uma coisa estável, fixada de uma vez por todas, que, portanto, deve ter também um modo de repartição fixado de uma vez por todas. De um modo racional, porém, pode-se, contudo, apenas 1. tentar descobrir o modo de repartição com que se começará e 2. procurar encontrar a tendência geral em que o ulterior desenvolvimento se move. Sobre isto, porém, não encontro uma palavra em todo o debate.
A palavra [o adjectivo] «materialista [materialistich], na Alemanha, serve, em geral, a muitos escritores jovens de simples frase com que etiquetam, sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa, isto é, colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido a coisa. A nossa concepção da história, porém, é, antes de tudo, um guia [eine Anleitung] para o estudo, [não é] nenhuma alavanca de construções à la (7) hegelianagem [Hegelianertum]. A história toda tem que ser estudada de novo, as condições de existência [Daseinsbedingungen] das diversas formações sociais [Gesellschaftsformationen] têm que ser investigadas em pormenor, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver [Anschauungsweise] políticos, de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem. Relativamente a isto, até agora, só pouco aconteceu, porque só poucos se dispuseram seriamente a isso. Relativamente a isso, nós precisamos de [uma] ajuda em massa, o domínio é infinitamente grande e quem quiser trabalhar seriamente pode conseguir muito e distinguir-se. Em vez disto, porém, a frase materialismo histórico ([e], precisamente, de tudo se pode fazer uma frase) serve a muitos jovens alemães apenas para construir ordenada e sistematicamente [systematisch zurechtzukonstruiren], o mais rapidamente possível, os seus próprios conhecimentos históricos relativamente parcos — a história económica ainda anda de cueiros! —, e para parecerem depois muito formidáveis. E então pode, pois, vir um Barth e atacar a coisa mesma que, pelo menos no seu meio [Umgebung], fora degradada a mera frase.
No entanto, tudo isto se resolverá. Na Alemanha, nós estamos agora suficientemente fortes para poder suportar muito. Um dos maiores serviços que a lei dos socialistas (8) nos fez foi libertar-nos da importunidade do estudioso [Studiosus] alemão com bafos de socialismo [sozialistisch angehauscht]. Estamos agora suficientemente fortes para poder também digerir o estudioso alemão, que de novo se arma em importante. V. — V. que realmente já realizou alguma coisa — teve V. mesmo que ter observado quão poucos dos jovens literatos que se ligaram ao Partido se dão ao trabalho de se entregarem à Economia, à História da Economia, à História do Comércio, da Indústria, da Agricultura, das Formações Sociais. Quantos conhecem de Maurer (9) mais do que o nome? A suficiência do jornalista haveria aqui que chegar para tudo e, [os resultados] são também a condizer. Muitas vezes, é como se esses senhores acreditassem que, para os operários, qualquer coisa é boa. Se esses senhores soubessem como Marx sustentava que as suas melhores coisas ainda não eram suficientemente boas para os operários, como ele encarava como um crime oferecer aos operários algo de inferior ao melhor de tudo!...
Publicado pela primeira vez na íntegra na revista Sozialistiche Monatshefte n.os 18-19, 1920. Publicado segundo o texto do manuscrito. Traduzido do alemão.
Notas
(1) Trata-se do livro de Paul Barth Die Geschichtsphilosophie Hegels und Hegelianer bis auf Marx und Hartmann (A Filosofia da História de Hegel e dos Hegelianos até Marx e Hartmann), publicado em Leipzig em 1890.
Paul Barth (1858-1922): filósofo e sociólogo alemão, professor da Universidade de Leipzig.
(2) Deutsche Worte (A Palavra Alemã): revista de económica e político-social austríaca que se publicou em Viena de 1881 a 1904. O artigo de Moritz Wirth «A arbitrariedade em relação a Hegel e as Perseguições contra ele na Alemanha Actual» foi publicado em 1890, no n.º 5 da revista.
Moritz Wirth (1849-m. depois de 1916): economista e publicista alemão.
(3) Em latim no texto: primeiro agente, primeira causa.
(4) Em francês no texto: «Tudo o que eu sei é que não sou Marxista.»
(5) Em latim no texto: quantidade.
(6) Berliner Volks-Tribüne (Tribuna Popular de Berlim): semanário social-democrata, ligado ao grupo anarquista dos «jovens», publicou-se de 1887 a 1892.
Os materiais referentes à discussão em torno da questão «A cada um o produto integral do seu trabalho» foram publicados no jornal de 14 de Junho até 12 de Julho de 1890.
(7) Em francês no texto: à maneira de.
(8) Trata-se da lei de excepção contra os socialistas promulgada na Alemanha em 21 de Outubro de 1878. Em virtude desta lei foram proibidas todas as organizações do Partido Social-Democrata, as organizações operárias de massas, a imprensa operária, foi confiscada a literatura socialista e perseguidos os sociais-democratas. Por pressão do movimento operário de massas a lei foi abolida a 1 de Outubro de 1890.
(9) Georg Ludwig Maurer (1790-1872): historiador alemão, investigador do regime social da Alemanha antiga e medieval.